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Steven Meisel: O olhar que transcende a moda

Publicado em: 4 Abril 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Steven Meisel transforma a fotografia comercial num manifesto social. Este visionário nova-iorquino analisa a nossa época com o seu olhar implacável, criando imagens que transcendem a moda para se tornarem verdadeiros testemunhos culturais, onde cada detalhe está submetido à sua vontade criadora.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Steven Meisel não é um simples fotógrafo de moda. Ele é o olhar implacável que dissecou a nossa época, a mão que esculpiu a identidade visual de toda uma geração, e o espírito que transformou a fotografia comercial num verdadeiro manifesto social. Desde que posou o seu Instamatic na sua primeira vítima consentente nos anos 70, este nova-iorquino nascido em 1954 reinventou os códigos de um meio que pensávamos conhecer.

Meisel é esse génio inquietante que se esconde atrás de cada capa da Vogue Italia durante mais de duas décadas, esse visionário que orquestrou o escandaloso livro “Sex” de Madonna, esse artista que criou quase todas as campanhas da Prada desde 2004. Mas reduzir Meisel às suas colaborações prestigiadas é como alegar que Picasso era apenas um decorador de cerâmicas.

Meisel é este fenómeno raro no universo da moda: um homem que conseguiu infiltrar-se neste circo de vaidades para o transformar em teatro social. A sua fotografia não é uma simples documentação, é uma insurreição visual permanente. Imagine lá: este nova-iorquino que, desde a infância, perseguia as modelos nas ruas com o seu Instamatic para capturar a sua essência, tornou-se aquele que redefine o que consideramos belo, chocante ou digno de ser observado.

O seu percurso é curiosamente irónico, este licenciado em ilustração pela Parsons School of Design começou por desenhar moda antes de a capturar através da sua objetiva. Ele transformou um olho formado ao traço e à cor numa máquina para desconstruir o espetáculo social que chamamos “moda”. Esta metamorfose não é inocente, revela a profundidade filosófica que sustenta o seu trabalho.

Se examinarmos a sua obra pelo prisma da filosofia existencialista de Simone de Beauvoir, a ligação torna-se óbvia. Beauvoir ensinou-nos que “Não se nasce mulher: torna-se mulher” [1], uma declaração que ressoa profundamente no trabalho de Meisel. As suas séries fotográficas não mostram simplesmente mulheres, expõem como a sociedade fabrica “a mulher” como conceito e como espetáculo. Pegue na sua famosa série “Makeover Madness” para a Vogue Italia em 2005: modelos envoltas em ataduras pós-operatórias, vestidas de alta-costura. Não é esta a perfeita ilustração visual da construção social do feminino que Beauvoir teorizava?

Beauvoir escrevia que “o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo” [2]. Meisel compreende esta realidade com uma acuidade dolorosa. Quando fotografa Kristen McMenamy no Ritz Paris em 1993, nua exceto por um chapéu sumptuoso, não se trata de erotismo fácil, mas de uma demonstração crua de como o corpo feminino é simultaneamente celebrado e objetificado na nossa cultura.

O génio de Meisel reside na sua capacidade de usar as próprias ferramentas da indústria da moda, a iluminação impecável, a composição perfeita, as modelos sublimes, para virar o espelho para nós e dizer: “Olhem o que fazemos, olhem o que celebramos, olhem o que punimos”. É um feito filosófico disfarçado de fotografia de moda.

Consideremos agora o seu trabalho por outro ângulo: o da sociologia e particularmente das teorias de Pierre Bourdieu sobre a distinção social. Bourdieu sustentava que o gosto nunca é inocente, é sempre um marcador de classe e uma ferramenta de dominação social [3]. As fotografias de Meisel jogam precisamente neste território. A sua edição “Black Issue” da Vogue Italia em 2008, onde todas as modelos eram negras, não foi apenas uma celebração da beleza negra, mas uma crítica incisiva dos mecanismos de exclusão a atuar na indústria da moda.

“A moda é totalmente racista”, declarou o próprio Meisel. “Tirar fotografias permite às vezes fazer uma declaração mais ampla” [4]. Através desta edição emblemática, utilizou o seu poder para expor como a moda constrói a sua própria hierarquia social racializada, a sua própria economia de valor baseada na exclusão. É exatamente isto que Bourdieu chamava “violência simbólica”, esta forma de dominação que se exerce com a cumplicidade tácita dos dominados.

Meisel entende que a moda é um sistema de signos que comunica e reforça as hierarquias sociais. A sua série “Super Mods Enter Rehab” (2007) mostra modelos a representar toxicodependentes glamorosos. Esta série provocou indignação precisamente porque expunha como a moda se apropria até mesmo do sofrimento para o transformar em espetáculo consumível. Bourdieu teria apreciado esta mise en abyme, uma crítica do sistema realizada dentro do próprio sistema.

Em “State of Emergency” (2006), Meisel encena modelos assediadas por “polícias” durante uma sessão fotográfica. Os corpos femininos glamorosos tornam-se o palco de uma violência social estilizada. Como Bourdieu escreveu, “o corpo é a mais irrefutável objetivação do gosto de classe” [5]. Meisel transforma esses corpos em campos de batalha sociológicos.

A carreira de Meisel é pontuada por esses momentos em que ele usa a linguagem da moda para questionar a própria moda. Quando fotografou Madonna para o seu livro “Sex” em 1992, não se tratava simplesmente de provocação, mas de uma exploração de como os corpos (particularmente femininos) são codificados, como a sexualidade é construída e encenada na nossa cultura. Madonna e Meisel compreendiam ambos que o sexo nunca é simplesmente natural, é sempre culturalmente construído, sempre performativo.

O que é fascinante em Meisel é que ele atua desde o interior. Ao contrário da maioria dos críticos de moda que lançam suas flechas desde o exterior, ele está no coração desta máquina. Ele fotografou praticamente todas as capas da Vogue Italia durante duas décadas. Realizou campanhas para Versace, Dolce & Gabbana, Prada e inúmeras outras marcas de luxo. Ele é o insider definitivo que se tornou subversivo.

Esta posição única lhe confere uma autoridade incontestável. Quando Simone de Beauvoir criticava a condição feminina, ela falava como mulher; quando Bourdieu analisava os mecanismos de distinção social, ele falava como acadêmico oriundo de um meio modesto. Meisel fala da moda como criador de moda. A sua crítica é tanto mais devastadora por vir de alguém que conhece intimamente as engrenagens do sistema.

No final da carreira, muitos fotógrafos caem na repetição ou na auto-paródia. Não Meisel. Cada nova série é uma reinvenção. Essa capacidade de se renovar mantendo uma coerência intelectual testemunha uma inteligência visual excecional. Como escreveu Susan Sontag: “A fotografia é, antes de tudo, uma forma de ver” [6]. E a forma de ver de Meisel está sempre em evolução, sempre à espreita das contradições do nosso tempo.

A sua retrospectiva recente “Steven Meisel 1993 A Year in Photographs”, exibida em Espanha, recorda-nos a intensidade criativa com que ele trabalhava mesmo no início da sua carreira. Em apenas um ano, produziu 28 capas para a Vogue e mais de cem editoriais. Essa produtividade frenética não é a de um mero técnico, é a de um artista possuído pela urgência de comentar o seu tempo.

Se alguns fotógrafos de moda procuram criar imagens intemporais, Meisel procura capturar precisamente a temporalidade do nosso tempo, as suas obsessões, os seus medos, os seus fantasmas. A sua fotografia está enraizada na história, não como um documento passivo, mas como uma intervenção ativa. Ele não fotografa simplesmente a moda, fotografa a nossa relação cultural com a moda, o nosso investimento psíquico nesses tecidos e poses.

Beauvoir escrevia que “é através do trabalho que a mulher, em grande parte, ultrapassou a distância que a separava do homem; é o trabalho que pode, por si só, garantir-lhe uma liberdade concreta” [7]. De forma semelhante, Meisel utiliza o seu trabalho fotográfico para ultrapassar a distância entre a superficialidade presumida da moda e uma crítica cultural substancial. O seu trabalho garante uma liberdade concreta às imagens de moda, a liberdade de serem mais do que simples publicidades, a liberdade de fazerem um comentário social.

Bourdieu, por sua vez, apontava que “o gosto classifica e classifica aquele que classifica” [8]. Meisel, ao classificar e categorizar constantemente através das suas escolhas visuais, submete-se ele próprio ao julgamento. A sua longevidade numa indústria notoriamente volátil sugere que ele ganhou o direito de classificar, de estabelecer o que é digno de ser visto e como deve ser visto.

O mais irónico talvez seja que o próprio Meisel permanece largamente invisível. Ao contrário de outros fotógrafos famosos que cultivam a sua própria imagem pública, Meisel é notoriamente discreto, raro em fotografias, dando poucas entrevistas. Esta ausência deliberada do espaço público contrasta com a onipresença do seu trabalho. Assim, ele torna-se uma espécie de presença fantasmagórica no mundo da moda, em todo o lado e em lado nenhum simultaneamente.

Esta postura recorda a do filósofo, que observa o mundo sem necessariamente se envolver diretamente nele. Tal como Beauvoir que analisava as estruturas sociais mantendo uma distância crítica, ou como Bourdieu que cartografava os campos sociais reconhecendo a sua própria posição nesses campos, Meisel observa, documenta e critica permanecendo na sombra.

O que distingue Steven Meisel não é a sua maestria técnica (embora inegável), nem a sua capacidade de capturar a beleza (embora extraordinária), mas a sua vontade de transformar a fotografia de moda numa ferramenta de investigação social e filosófica. Num mundo onde as imagens são cada vez mais numerosas mas menos significativas, Meisel cria fotografias que exigem e recompensam a atenção.

Ele recorda-nos que ver nunca é um ato inocente, é sempre um ato de julgamento, de categorização, de posicionamento social. E nesta economia visual sobrecarregada que caracteriza a nossa época, o seu trabalho permanece um convite a olhar mais atentamente, mais criticamente, mais profundamente. Não simplesmente para admirar a superfície cintilante da moda, mas para entrever as estruturas profundas que sustentam essa superfície.

Steven Meisel não é apenas um fotógrafo de moda, é um filósofo visual, um sociólogo da imagem, um antropólogo do glamour. E num mundo cada vez mais definido por imagens superficiais, o seu olhar penetrante é mais necessário do que nunca.


  1. Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”, Gallimard, 1949.
  2. Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo, Volume I: Os factos e os mitos”, Gallimard, 1949.
  3. Pierre Bourdieu, “A Distinção: Crítica social do julgamento”, Les Éditions de Minuit, 1979.
  4. Steven Meisel, entrevista para a revista 032c, Dezembro de 2008.
  5. Pierre Bourdieu, “A Distinção: Crítica social do julgamento”, Les Éditions de Minuit, 1979.
  6. Susan Sontag, “Sobre a fotografia”, Christian Bourgois, 1979.
  7. Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo, Volume II: A experiência vivida”, Gallimard, 1949.
  8. Pierre Bourdieu, “A Distinção: Crítica social do julgamento”, Les Éditions de Minuit, 1979.
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Referência(s)

Steven MEISEL (1954)
Nome próprio: Steven
Apelido: MEISEL
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 71 anos (2025)

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