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Tania Marmolejo : Arquétipos e modernidade

Publicado em: 22 Setembro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 11 minutos

Tania Marmolejo cria monumentais retratos femininos onde se entrelaçam heranças escandinavas e essência caribenha. As suas telas exploram a identidade feminina contemporânea através de olhares enigmáticos que desafiam as convenções. A artista dominicano-sueca revela a complexidade da alma feminina por meio de uma técnica expressiva de rara intensidade emocional.

Ouçam-me bem, bando de snobs, existem artistas que pintam não para decorar os vossos salões burgueses, mas para rasgar o véu das nossas certezas e nos confrontar com os abismos da condição feminina contemporânea. Tania Marmolejo pertence a essa rara espécie de artistas que recusam a facilidade do bonito para explorar os territórios mutáveis da identidade e do desejo. A sua obra, longe das complacências estéticas do nosso tempo, impõe-se como uma meditação profunda sobre a complexidade da experiência feminina num mundo em perpétua mutação.

Esta artista dominicano-sueca, nascida em 1975 em Santo Domingo, encarna pelo seu percurso as hibridações culturais que caracterizam a nossa época globalizada. Formada tanto na Noruega, na República Dominicana e na Parsons School of Design de Nova Iorque, Marmolejo soube extrair dessa diversidade geográfica e cultural para forjar uma linguagem plástica singular. A sua arte não se limita a justapor influências: ela metamorfoseia-as numa síntese original que interroga as noções de pertença e identidade.

As grandes telas de Marmolejo impressionam primeiro pela sua monumentalidade assumida. Estes rostos femininos, de dimensões imponentes, olham-nos com uma intensidade perturbadora, os seus olhos desmesuradamente ampliados parecendo absorver toda a luz do espaço de exposição. Esta estratégia de ampliação não é casual: procede de um gesto de resistência face àqueles que, no meio artístico comercial, ousaram qualificar o seu trabalho de “demasiado feminino”. Em resposta a esta crítica machista, a artista escolheu ampliar os seus formatos, transformando os seus retratos em presenças incontornáveis que se impõem fisicamente no espaço do espectador.

O arquétipo do feminino contemporâneo

A obra de Tania Marmolejo encontra uma ressonância particular quando a examinamos através do prisma da psicanálise de Jung, nomeadamente o conceito de anima [1]. Carl Gustav Jung definia a anima como a personificação de todas as tendências psicológicas femininas presentes no inconsciente masculino, mas esta noção pode ser alargada para compreender os arquétipos do feminino que habitam o nosso imaginário coletivo. As personagens de Marmolejo parecem encarnar estas figuras arquétipas, navegando entre a inocência e a sensualidade, a vulnerabilidade e o poder.

As expressões ambíguas das suas figuras femininas evocam os diferentes estádios de desenvolvimento da anima descritos por Jung: desde a figura maternal primitiva até à guia espiritual Sofia, passando pela amante Helena e a figura mariana. Estas mulheres de olhares enigmáticos trazem em si a multiplicidade dos papéis femininos, recusando deixar-se encerrar numa categoria única. Elas personificam o que Jung chamou a função mediadora da anima, servindo de ponte entre o consciente e o inconsciente, entre o racional e o intuitivo.

A própria artista reconhece que as suas personagens não são autorretratos no sentido estrito, mas que carregam uma parte de si mesma. Esta abordagem corresponde à concepção de Jung segundo a qual os arquétipos se manifestam através da experiência pessoal enquanto transcendem o individual para tocar o universal. As mulheres de Marmolejo tornam-se assim suportes de projeção para os espectadores, cada um reconhecendo nelas as suas próprias questões sobre a identidade feminina.

A técnica pictórica da artista, que pinta directamente na tela sem esboço prévio, recorda o processo de imaginação activa tão caro a Jung. Este método permite que o inconsciente se expresse directamente, sem a censura da mente racional. Marmolejo descreve ela própria este processo como expressionista, deixando as expressões dos rostos evoluírem de forma autónoma ao longo da criação. Esta abordagem revela uma compreensão intuitiva dos mecanismos do inconsciente coletivo, permitindo que os arquétipos se manifestem espontaneamente na tela.

Os fundos movimentados que rodeiam as suas personagens, céus tempestuosos, vegetação luxuriante, elementos naturais em movimento, evocam as forças inconscientes que agitam a psique. Estes ambientes simbolizam as turbulências interiores, as paixões reprimidas e as energias criativas que caracterizam a dimensão anímica da experiência humana. Ao contrário das suas figuras centrais que permanecem fixas e contemplativas, estes fundos traduzem o dinamismo do inconsciente, sempre em movimento, sempre em transformação.

A influência da sua herança multicultural escandinava e caribenha pode também ser vista como uma encarnação da teoria de Jung sobre a compensação psíquica. As tonalidades ora sombrias e melancólicas, ora vibrantes e tropicais das suas obras, refletem esta bipolaridade cultural que enriquece a sua paleta emocional. Esta dualidade não é um conflito mas uma síntese criativa, permitindo à artista aceder a um registo expressivo mais vasto e mais nuançado.

O realismo mágico como estratégia narrativa visual

A arte de Tania Marmolejo insere-se numa filiação estética com o realismo mágico latino-americano [2], movimento literário que marcou profundamente a cultura desta região no século XX. Tal como os escritores Gabriel García Márquez ou Alejo Carpentier, a artista integra elementos fantásticos num contexto realista, criando uma poética da ambiguidade que questiona as fronteiras entre o racional e o irracional, o quotidiano e o extraordinário.

O realismo mágico, tal como foi teorizado por Carpentier no seu ensaio “Lo real maravilloso americano” (O maravilhoso real latino-americano), encontra as suas origens no encontro entre as cosmovisões indígenas e as influências europeias, criando uma realidade mestiça onde o maravilhoso faz parte integrante do quotidiano. Esta estética da hibridação corresponde perfeitamente à experiência de Marmolejo, artista caribenha formada na Europa e estabelecida nos Estados Unidos, navegando entre vários mundos culturais.

As personagens de Marmolejo possuem essa qualidade enigmática própria das figuras do realismo mágico: parecem evoluir num mundo paralelo onde as leis da psicologia ordinária já não se aplicam inteiramente. Os seus olhares fixos e penetrantes evocam um conhecimento secreto, uma conexão com forças invisíveis que recorda a atmosfera misteriosa dos relatos de García Márquez. Estas mulheres não são simplesmente retratos: tornam-se alegorias da condição feminina contemporânea, portadoras de uma sabedoria ancestral e de uma modernidade perturbadora.

A técnica pictórica da artista participa desta estética do realismo mágico. As suas empastamentos delicados e as suas glaçadas subtis criam efeitos de matéria que oscilam entre o hiperrealismo e a estilização. As peles nacaradas das suas personagens parecem animadas por uma vida interior, enquanto os seus cabelos flutuantes desafiam por vezes a gravidade. Esta ambiguidade técnica reforça a impressão de um mundo onde o natural e o sobrenatural coexistem harmoniosamente.

Os ambientes que rodeiam as suas figuras participam também desta poética do maravilhoso quotidiano. Florestas luxuriantes, céus tempestuosos, arquiteturas oníricas misturam-se em composições que evocam as paisagens mentais queridas pelos escritores do realismo mágico. Estes cenários não são simples telas de fundo: constituem espaços psicológicos onde se desdobram os dramas interiores das suas personagens.

A arte de Marmolejo partilha com o realismo mágico esta capacidade de transformar o ordinário em extraordinário pela única força do olhar. Como os narradores de García Márquez que descrevem os acontecimentos mais fantásticos com um aparente desapego, a artista apresenta as suas visões com uma evidência perturbadora. Esta naturalização do maravilhoso constitui uma das estratégias mais eficazes do realismo mágico, permitindo ao espectador aceitar o inaceitável e ver o invisível.

A dimensão política do realismo mágico encontra também um eco na obra de Marmolejo, nomeadamente através da sua série “Master and Commander” dedicada às mulheres iranianas. Ao transformar a resistência política em alegorias visuais, a artista inscreve-se na tradição dos escritores latino-americanos que utilizavam a ficção para contornar a censura e expressar verdades proibidas. As suas mulheres de olhares desafiantes tornam-se símbolos de resistência, figuras de emancipação que trazem a esperança de um mundo mais justo.

Esta filiação com o realismo mágico não resulta da imitação, mas de uma reinvenção contemporânea dos códigos estéticos deste movimento. Marmolejo adapta as estratégias narrativas do realismo mágico às especificidades do meio pictórico, criando uma linguagem visual que conserva a força poética e crítica dos seus modelos literários enquanto afirma a sua singularidade artística.

A arte contemporânea e as suas resistências

No panorama atual da arte contemporânea dominado por instalações espectaculares e novas tecnologias, a obra de Tania Marmolejo afirma a resistência da pintura figurativa. Esta posição não é nostálgica, mas estratégica: responde a uma necessidade de rehumanização da arte face às derivações conceptuais e mercantis que caracterizam a nossa época. As suas grandes telas funcionam como ilhas de contemplação num mundo saturado de imagens efémeras e de solicitações visuais.

O compromisso da artista com a pintura a óleo, meio tradicional por excelência, traduz uma vontade de se inscrever na continuidade da história da arte ao mesmo tempo que a renova. As suas referências assumidas aos mestres do Renascimento e do Barroco, nomeadamente no seu uso dramático do claro-escuro, testemunham uma cultura artística sólida que alimenta a sua linguagem contemporânea. Esta abordagem erudita contrasta com a amnésia histórica que caracteriza uma parte da criação atual.

A receção crítica do seu trabalho revela as tensões que atravessam o mercado da arte contemporânea. Durante muito tempo confinada aos circuitos da ilustração comercial e do design têxtil, Marmolejo teve de conquistar a sua legitimidade artística face a um meio frequentemente desconfiado dos criadores provenientes das artes aplicadas. O seu sucesso recente no mercado asiático, onde as suas obras atingem preços várias vezes superiores às estimativas, testemunha um reconhecimento que ultrapassa os preconceitos ocidentais.

Esta trajetória ilumina os mecanismos de validação artística num mundo globalizado. Como observa a crítica de arte Florence Ho, da Sotheby’s Hong Kong, os colecionadores asiáticos parecem menos sensíveis às hierarquias tradicionais entre “grande arte” e artes decorativas. Percebem na obra de Marmolejo uma síntese bem-sucedida entre excelência técnica e relevância contemporânea, qualidades que correspondem aos seus critérios estéticos.

A evolução do estatuto da artista revela também as transformações do sistema artístico contemporâneo. A sua passagem de ilustradora comercial a artista reconhecida ilustra a crescente permeabilidade das fronteiras entre diferentes campos da criação visual. Esta transição testemunha a sua capacidade de adaptação e inteligência estratégica, qualidades essenciais num ambiente artístico cada vez mais competitivo.

Para uma estética da emancipação

A arte de Tania Marmolejo participa de um movimento mais amplo de reapropriação da representação feminina por artistas mulheres. As suas personagens escapam aos estereótipos da mulher-objeto que dominaram longamente a arte ocidental para propor figuras complexas e contraditórias, portadoras de uma subjetividade autónoma. Esta abordagem insere-se nas lutas feministas contemporâneas, evitando ao mesmo tempo os riscos do militante explícito.

A força da sua abordagem reside na capacidade de universalizar a experiência feminina sem a desincorporar. As suas mulheres permanecem profundamente humanas, atravessadas por emoções reconhecíveis, ao mesmo tempo que acedem a uma dimensão simbólica que ultrapassa o anedótico. Esta tensão entre o particular e o universal constitui uma das questões principais da arte contemporânea, frequentemente dividida entre compromisso político e autonomia estética.

A evolução recente da sua prática para formatos ainda mais monumentais revela uma ambição crescente. Estas obras imponentes transformam o espaço expositivo num teatro de contemplação, forçando o espectador a estabelecer uma relação física e emocional com as personagens representadas. Esta estratégia de imersão contrasta com a distância irónica que caracteriza grande parte da arte contemporânea.

O seu sucesso crescente na cena artística internacional não deve ocultar os desafios que a esperam. A passagem do estatuto de artista emergente para aquele de valor consolidado no mercado de arte acompanha-se frequentemente de uma pressão comercial que pode afetar a liberdade criativa. A sua capacidade para preservar a integridade artística face às solicitações do mercado constituirá um teste importante para o futuro da sua carreira.

O reconhecimento de que hoje desfruta Tania Marmolejo testemunha uma evolução das sensibilidades artísticas contemporâneas. A sua arte, que reconcilia tradição e modernidade, técnica e emoção, encontra eco num público em busca de sentido e beleza. Esta receção positiva sugere que o futuro da arte não passa necessariamente pela ruptura sistemática com o passado, mas pode seguir caminhos de uma síntese criativa respeitadora do património cultural.

Enquanto o nosso mundo artístico é frequentemente dominado por modismos e especulações financeiras, a obra de Marmolejo recorda que a arte autêntica nasce da necessidade interior e da mestria técnica. As suas telas, longe das facilidades conceptuais, exigem do espectador um esforço de contemplação e compreensão que retoma as funções tradicionais da arte: emocionar, questionar, elevar. Esta exigência estética, longe de ser elitista, abre antes espaços de diálogo e partilha entre a artista e o seu público.

A arte de Tania Marmolejo convida-nos finalmente a reconsiderar as nossas relações à imagem e à representação numa época saturada de estímulos visuais. As suas figuras silenciosas e meditativas constituem refúgios contemplativos no tumulto contemporâneo. Elas recordam-nos que atrás de cada olhar se esconde um universo de complexidade e mistério, que a arte tem como missão revelar e celebrar. Nesse sentido, a sua obra ultrapassa o simples enquadramento estético para tocar nas questões fundamentais da existência humana e da nossa relação com o mundo. Ela ensina-nos que a verdadeira revolução artística não reside numa tabula rasa do passado, mas na capacidade de reinventar as formas herdadas para expressar as urgências do presente.

Esta artista da diáspora cultural, navegando entre influências nórdicas e tropicais, encarna as possibilidades criativas da nossa época mestiça. A sua arte prova que é possível construir uma obra singular assumindo plenamente as suas múltiplas heranças, sem nostalgia nem rejeição, mas numa síntese dinâmica que enriquece o património artístico contemporâneo. Nesse sentido, Tania Marmolejo não se limita a acrescentar a sua voz ao concerto artístico do nosso tempo: ela contribui para renovar a partitura, abrindo caminhos inéditos para as gerações futuras de artistas em busca de autenticidade e pertinência.


  1. Jung, Carl Gustav. Os Arquétipos do inconsciente coletivo, Gallimard, 1977.
  2. Carpentier, Alejo. “O real maravilhoso americano”, 1949.
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Referência(s)

Tania MARMOLEJO (1975)
Nome próprio: Tania
Apelido: MARMOLEJO
Outro(s) nome(s):

  • Tania Marmolejo Andersson

Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • República Dominicana

Idade: 50 anos (2025)

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