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Wolfgang Tillmans: Uma nova forma de ver

Publicado em: 12 Abril 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Wolfgang Tillmans redefine a nossa forma de ver, as suas fotografias capturando o ordinário com uma intensidade extraordinária. Seja de corpos nus, espaços íntimos ou abstrações, a sua obra transcende a documentação para questionar a nossa percepção do mundo e as estruturas que a condicionam.

Ouçam-me bem, bando de snobs, podem continuar a fingir que compreendem a arte conceptual enquanto bebem champanhe barato nas inaugurações, mas enquanto discutem as nuances de uma tela branca, Wolfgang Tillmans redefiniu radicalmente o que significa olhar para o mundo. Sim, olhar realmente. Porque Tillmans nunca teve medo de focar o seu objectivo no que preferimos ignorar, corpos nus, clubes depois da festa, vestígios da vida quotidiana que varremos para debaixo do tapete da nossa existência policiada.

Nascido em 1968 em Remscheid, na Alemanha ainda dividida por um muro, símbolo perfeito da nossa incapacidade colectiva de ver para além das nossas próprias construções, Tillmans desenvolveu uma visão fotográfica que escapa a qualquer categorização fácil. As suas fotografias aparentemente aleatórias, frequentemente penduradas sem moldura com fita adesiva ou molas, desafiam a preciosidade tradicional da arte fotográfica e obrigam-nos a questionar por que motivo certas imagens merecem a nossa atenção e outras não.

Vamos encarar os factos: Tillmans pratica uma forma particular de alquimia visual. Não, não se trata aqui de transmutação mística, mas sim de uma forma de transformação sensorial onde o ordinário se torna extraordinário. Veja-se “Lutz & Alex sitting in the trees” (1992), essa imagem agora icónica de duas pessoas empoleiradas em ramos de árvores, nuas sob os seus impermeáveis abertos. A imagem evoca imediatamente o mito de Adão e Eva após a queda, mas numa versão contemporânea onde a vergonha já não tem lugar, onde os corpos andróginos revelam uma nova forma de inocência consciente de si mesma.

Esta fotografia remete-nos ao pensamento do filósofo francês Michel Foucault sobre o corpo como local de poder e resistência. Quando Foucault analisava como o corpo se torna um campo de batalha político, estava a antecipar exatamente o que Tillmans capturaria visualmente décadas mais tarde [1]. Nas suas fotografias de corpos nus, de clubes, de manifestações pelos direitos LGBT, Tillmans não se limita a documentar, ele realiza o que Foucault teorizava: uma forma de resistência através da visibilidade. “A sexualidade faz parte do nosso comportamento. Ela faz parte da nossa liberdade neste mundo”, escrevia Foucault, como se estas palavras estivessem destinadas a tornar-se o manifesto não escrito da obra de Tillmans.

A visão de Tillmans não é a de um voyeur, mas de um participante que compreende que ver, ver verdadeiramente, é um ato político. Quando fotografa amantes a beijarem-se num clube, como em “The Cock (kiss)” (2002), ou quando documenta os espaços após uma festa, como em “wake” (2001), ele não procura o espetacular mas a autenticidade de um momento vivido plenamente. Foucault lembrava-nos que “a visibilidade é uma armadilha”, e ainda assim, Tillmans inverte brilhantemente essa armadilha contra si mesma, transformando a visibilidade numa ferramenta de emancipação.

O trabalho de Tillmans transcende a simples documentação para alcançar uma forma de epistemologia visual, uma teoria do conhecimento baseada no que escolhemos ver e como o vemos. Quando Foucault falava do “olho do poder”, estava a descrever como o nosso olhar é condicionado pelas estruturas sociais dominantes. Tillmans, com as suas instalações onde as hierarquias tradicionais são abolidas, onde uma pequena fotografia de um detalhe íntimo pode coexistir em igualdade com uma grande imagem abstrata, desafia diretamente essas estruturas de poder visual.

As séries “Freischwimmer” ou “Silver”, com as suas abstrações criadas sem máquina fotográfica, por manipulação direta do papel fotossensível e dos produtos químicos, ilustram perfeitamente essa vontade de Tillmans de questionar não só aquilo que vemos, mas como o vemos. Estas obras não representam nada identificável e, no entanto, conseguem evocar sensações corporais, fluidos, movimentos, como se Tillmans tivesse encontrado uma forma de fotografar não a aparência das coisas, mas a sua essência mesmo.

E que dizer do seu projeto “Truth Study Center”, onde justapõe as suas próprias imagens com recortes de jornais, relatórios científicos ou documentos políticos? Não será esta uma aplicação direta daquilo a que Foucault chamava a arqueologia do saber, esse método de análise que procura descobrir as estruturas ocultas que informam a nossa compreensão do mundo? Tillmans não se limita a criticar os media ou a política, cria um dispositivo que nos permite visualizar os regimes de verdade que moldam a nossa perceção da realidade.

Mas limitar-se a ver Tillmans apenas através do prisma foucaultiano seria um erro. A sua obra também dialoga de forma marcante com o pensamento de Henri Lefebvre sobre a produção do espaço. Lefebvre, esse pensador marxista francês que revolucionou a nossa compreensão do espaço urbano e social, teria reconhecido em Tillmans um aliado inesperado. Porque quando Tillmans fotografa a arquitetura, como no seu projeto “Book for Architects”, não se interessa apenas pelos edifícios, mas pela forma como os espaços são vividos, percebidos e concebidos [2].

Lefebvre distinguia três dimensões do espaço social: o espaço percebido (a prática espacial), o espaço concebido (as representações do espaço) e o espaço vivido (os espaços de representação). As fotografias de Tillmans atravessam constantemente estas três dimensões. Tome-se as suas imagens de clubes como “Lights (Body)” (2000-2002), onde a pista de dança vazia, com as suas luzes estroboscópicas e jogos de sombra, evoca toda a intensidade de uma experiência corporal coletiva sem sequer mostrar um único bailarino. É precisamente isso que Lefebvre chamava de espaço vivido, um espaço carregado de imaginário e simbolismo.

“O espaço não é um objeto científico separado da ideologia ou da política”, escrevia Lefebvre em “A Produção do Espaço” (1974). “Ele sempre foi político e estratégico”. Tillmans parece ter interiorizado esta visão quando fotografa as fronteiras, os aeroportos, os edifícios governamentais. As suas imagens da Concorde, este símbolo do progresso tecnológico e da mobilidade privilegiada, ou as suas fotografias da zona fronteiriça de Lampedusa, onde migrantes arriscam a vida para chegar à Europa, são comentários visuais diretos sobre a política do espaço.

A abordagem de Tillmans nas suas exposições, onde rejeita deliberadamente as hierarquias espaciais tradicionais, também coincide com a crítica lefebvriana do espaço abstrato do capitalismo. Quando Tillmans pendura as suas fotografias do chão ao teto, ignorando as convenções museológicas, realiza aquilo que Lefebvre denominava como “o direito à cidade”, o direito de transformar e apropriar-se do espaço urbano, ou neste caso, do espaço de exposição. Ele democratiza literalmente a forma como interagimos com a arte.

A filosofia espacial de Lefebvre encontra uma ressonância particular na forma como Tillmans trata os espaços íntimos. As fotografias de quartos por arrumar, casas de banho, roupas amarrotadas numa cadeira não são simples naturezas-mortas domésticas, mas explorações do que Lefebvre chamava de “espaço diferencial”, esses espaços que escapam à lógica homogeneizante do capitalismo. Nessas imagens, Tillmans captura aquilo que Lefebvre considerava essencial: a apropriação do espaço pelo corpo e pelo quotidiano.

Durante a sua grande retrospectiva no MoMA em 2022, intitulada “To Look Without Fear”, Tillmans levou essa lógica espacial ao seu paroxismo. A própria exposição tornava-se uma produção de espaço em sentido lefebvriano, onde os visitantes eram convidados a navegar não segundo um percurso linear imposto, mas segundo o seu próprio desejo. As fotografias não estavam agrupadas por temas ou cronologicamente, mas criavam constelações de sentido que emergiam organicamente da sua justaposição.

Esta retrospectiva também nos recordou que a obra de Tillmans está profundamente enraizada na história. As suas fotografias dos anos 90, com a celebração da cultura dos clubes e da libertação sexual pós-sida, não podem ser compreendidas sem o contexto da queda do muro de Berlim e desse breve período de otimismo global que se seguiu. Como Lefebvre teria analisado, estas imagens captam um momento histórico em que novos espaços sociais eram ativamente produzidos por comunidades marginalizadas.

Mas não se engane: Tillmans não é um documentarista neutro. O seu olhar é profundamente político, empenhado e por vezes até didático. Quando fotografa manifestações contra a guerra no Iraque ou pelos direitos LGBT, ou quando cria ele próprio cartazes contra o Brexit, assume plenamente o papel do artista como ator político. Como Lefebvre salientava, “mudar a vida, mudar a sociedade, não significa nada se não houver produção de um espaço apropriado.”

O que é particularmente impressionante na obra de Tillmans é a sua capacidade de tornar visível aquilo que Lefebvre chamava “o quotidiano”, essa dimensão da vida social que muitas vezes escapa às análises teóricas mas que constitui a própria matéria da nossa existência. As imagens de uma t-shirt a secar num radiador, de uma maçã pousada numa mesa, de um homem a lavar o cabelo no duche, todas estas cenas banais tornam-se, sob o olhar de Tillmans, revelações sobre a própria textura da nossa vida social.

Tillmans tem essa rara capacidade de nos mostrar simultaneamente o macro e o micro. Nas suas fotografias astronómicas, onde captura as estrelas, os planetas e os fenómenos celestes, confronta-nos com a imensidão cósmica. Mas nos seus grandes planos de pele, de tecidos ou de papel amarrotado, revela-nos um universo igualmente vasto no infinitamente pequeno. Essa oscilação constante entre diferentes escalas espaciais teria certamente fascinado Lefebvre, que se interessava pelas articulações entre o corpo, a habitação, a cidade e o mundo.

Há algo profundamente democrático nesta visão que atribui igual importância a uma vista do céu estrelado e a um canto de lençol amarrotado. Como escrevia Lefebvre, “o quotidiano, o próximo, está tão distante quanto o outro lugar e o outro lugar está tão próximo quanto o quotidiano.” Esta dialética do próximo e do distante está no coração da estética de Tillmans.

Mas atenção, não gostaria que pensassem que Tillmans é um fotógrafo “fácil” ou acessível. As suas abstrações, como a série “Silver” ou “Freischwimmer”, com as suas cores vibrantes e as suas formas orgânicas, podem parecer herméticas à primeira vista. No entanto, estas obras não são exercícios formalistas vazios. Elas exploram os próprios limites do meio fotográfico e põem em causa a nossa conceção do que é uma imagem.

É precisamente essa tensão entre acessibilidade e complexidade que faz de Tillmans um artista tão importante. Ele recusa o jargão elitista e as poses intelectuais, mas nunca sacrifica a profundidade conceptual. As suas instalações, com a aparência de descontracção, são na realidade meticulosamente orquestradas para criar diálogos visuais complexos. Como dizia Lefebvre, “o simples não é simplista, e a complexidade não é complicação.”

A carreira de Tillmans, desde os seus inícios em revistas como a i-D até à sua consagração institucional com o Prémio Turner em 2000 e as suas grandes retrospetivas nos museus mais prestigiados, ilustra perfeitamente o que Lefebvre chamava “a conquista da quotidianidade”. Ao elevar o banal ao estatuto de arte, ao tornar visíveis os corpos e os desejos marginalizados, ao recusar as hierarquias visuais estabelecidas, Tillmans transformou verdadeiramente a nossa forma de ver.

E não é esta a maior conquista de um artista? Fazer-nos ver aquilo que tínhamos à nossa frente mas que não reparávamos. Fazer-nos sentir aquilo que havíamos normalizado até à anestesia. Fazer-nos pensar no que tínhamos relegado para os ângulos mortos da nossa consciência. Como dizia tão justamente Lefebvre, “mudar a vida é primeiro mudar o espaço.”

Portanto, da próxima vez que vir uma fotografia de Tillmans, esteja ela pendurada com um simples clipe numa galeria elegante ou impressa numa revista, lembre-se de que não está apenas a olhar para uma imagem. Está a participar numa reconfiguração radical da nossa forma de ver o mundo.

E isso, bando de snobs, é muito mais subversivo do que todas as vossas teorias enredadas sobre arte contemporânea.


  1. Foucault, Michel. “Vigiar e Punir: O nascimento da prisão”, Gallimard, 1975.
  2. Lefebvre, Henri. “A Produção do Espaço”, Edições Anthropos, 1974.
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Referência(s)

Wolfgang TILLMANS (1968)
Nome próprio: Wolfgang
Apelido: TILLMANS
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Alemanha

Idade: 57 anos (2025)

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