Ouçam-me bem, bando de snobs. Na arena asséptica da arte contemporânea chinesa, onde a facilidade conceptual e a produção em série reinam supremas, Xia Yu emerge como um ser à parte, um artista que teima em não se submeter aos ditames do mercado. As suas pinturas a têmpera sobre madeira ou tela transportam-nos para um entre-dois fascinante, nem totalmente passado, nem completamente presente, suspensas numa espaço-tempo indefinido que nos captura sem nos largar.
As obras de Xia Yu evocam irresistivelmente aquelas velhas fotografias amarelecidas que encontramos nos álbuns de família, aquelas que carregam o peso dos anos e das memórias enterradas. Essas imagens desfocadas, quase brumosas, onde as personagens parecem flutuar num banho de luz difusa, como aparições de outro tempo. Mas enganem-se, não se trata de uma simples nostalgia barata nem de um exercício de estilo retro. O que Xia Yu faz é muito mais subtil e pertinente.
Nascido em 1981 na província de Anhui, este antigo estudante da Academia Central de Belas Artes de Pequim fez uma escolha radical ao adotar a têmpera como meio preferido. Uma escolha que não é trivial, pois esta técnica antiga, que remonta à Antiguidade grega e romana, exige paciência, precisão e meditação. Uma técnica que vai contra a corrente na nossa época de imediatismo e satisfação instantânea. Enquanto a maioria dos pintores contemporâneos procura o caminho rápido, Xia Yu envolve-se num processo laborioso que requer tempo e esforço.
Mas é precisamente nesta lentidão deliberada que reside a força da sua obra. Tomemos, por exemplo, a sua pintura emblemática “Picking Up Files” (2018): empregados de fato, de joelhos, recolhendo documentos espalhados pelo chão. Uma cena banal à primeira vista, mas que, sob o pincel de Xia Yu, se transforma numa poderosa alegoria da condição humana contemporânea. Estes corpos dobrados, submissos, recordam inevitavelmente “Les Glaneuses” de Millet, mas transpostos para o ambiente estéril e desumanizador do escritório moderno.
O artista pratica aquilo que eu chamaria de “arqueologia do presente”. Ele investiga o nosso quotidiano com a minúcia de um entomologista, exumando a poesia escondida na banalidade e revelando as tensões subterrâneas que animam as nossas existências normatizadas. O seu trabalho enquadra-se numa tradição literária que se poderia fazer remontar a Georges Perec, esse escritor francês que soube elevar o infra-ordinário ao estatuto de objeto de estudo. Como escreveu Perec: “O que acontece todos os dias e que volta todos os dias, o banal, o quotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infra-ordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar conta disso, como interrogá-lo, como descrevê-lo?” [1]. A esta questão, Xia Yu responde através da sua pintura, captando esses momentos fugazes e aparentemente insignificantes que constituem a trama das nossas vidas.
A sua série “Hand” é particularmente eloquente a este respeito. Estas pinturas de pequeno formato, onde só as mãos são representadas, tornam-se microcosmos expressivos que contam histórias bem mais eloquentes do que algumas obras monumentais. As mãos como “segundo rosto” do indivíduo, revelando o que as expressões faciais, frequentemente controladas e polidas na sociedade chinesa contemporânea, não conseguem expressar. Uma mão que segura uma chávena vazia, outra que dobra uma origami, tantos gestos ordinários que, isolados e amplificados pelo olhar do artista, adquirem uma dimensão quase metafísica.
O método de Xia Yu situa-se do lado de Italo Calvino e a sua “Leveza”. Nas suas “Lições americanas”, Calvino define a leveza não como uma fuga à pesadez do mundo, mas como uma forma diferente de o olhar: “A leveza para mim anda de mãos dadas com a precisão e a determinação, e não com o vago e o abandono ao acaso” [2]. Esta definição aplica-se perfeitamente à arte de Xia Yu, que alivia o peso do quotidiano não o ignorando, mas observando-o com uma acuidade particular.
Esta leveza traduz-se visualmente pelo uso que Xia Yu faz da luz nas suas pinturas. Uma luz que não tanto ilumina quanto banha as cenas representadas, criando essas zonas de desfoque características que conferem às suas obras a sua atmosfera tão particular. Em “Electric Bicycle, Sunset and Dog” (2021), a luz do crepúsculo envolve os protagonistas numa aura dourada, transformando uma cena urbana comum num momento suspenso, quase mágico. Este tratamento da luz evoca a fotografia analógica, com as suas imperfeições e acidentes felizes, mas também certos filmes de Wong Kar-wai, onde a luz se torna uma personagem por si só.
Mas não nos enganemos: por trás da aparente suavidade das imagens de Xia Yu esconde-se uma crítica afiada à sociedade chinesa contemporânea. As suas pinturas representam indivíduos presos nas engrenagens de um sistema que os ultrapassa, divididos entre aspirações pessoais e imposições sociais. As cenas de escritório, nomeadamente, funcionam como metáforas da alienação moderna. Em “老板也忧伤” (“O patrão também está triste”), um homem de negócios contempla o seu reflexo no chão polido, numa pose que recorda Narciso da mitologia grega. Uma imagem que condensa admiravelmente a vaidade e a solidão inerentes ao poder.
Esta dimensão crítica aproxima Xia Yu da tradição da sátira social, que se encontra tanto na literatura como nas artes visuais. Poderíamos estabelecer um paralelismo com o trabalho do escritor americano David Foster Wallace, nomeadamente o seu romance “The Pale King”, que aborda o tédio e a alienação num mundo burocrático. Wallace escrevia: “O verdadeiro tédio, o tédio adulto, é algo totalmente diferente. É a experiência mais solitária possível, como nenhuma outra” [3]. Esta solidão essencial, Xia Yu captura-a nas suas pinturas de empregados de escritório, congelados em posturas que evocam simultaneamente a submissão e uma forma de resistência passiva.
O cinema constitui outra influência maior na obra de Xia Yu. O seu sentido de composição e enquadramento, a sua forma de “cortar” a realidade para extrair momentos significativos, denuncia uma certa sensibilidade cinematográfica. Pensamos especialmente no realizador japonês Yasujirō Ozu e na sua forma de filmar o quotidiano com uma economia de meios que não exclui a profundidade emocional. Como explica o crítico de cinema Donald Richie acerca de Ozu: “Ele não procura impressionar o espectador com o que mostra, mas emocionar com o que sugere” [4]. Esta observação aplica-se perfeitamente a Xia Yu, cuja arte se baseia em grande parte na sugestão e evocação mais do que numa afirmação peremptória.
Há algo profundamente subversivo nesta abordagem aparentemente tão sensata e medida. Ao escolher pintar cenas do quotidiano com tanto cuidado e atenção, Xia Yu afirma o valor intrínseco desses momentos ordinários que a nossa sociedade hiperativa nos incita a negligenciar. Convida-nos a abrandar, a olhar verdadeiramente para o que nos rodeia, a prestar atenção aos detalhes que fazem a própria textura da nossa existência. E este convite tem algo de político num mundo onde a velocidade é erguida a valor supremo.
A própria técnica que utiliza, a têmpera, participa nesta resistência discreta. Na época em que os artistas contemporâneos competem em ousadia tecnológica, utilizando realidade virtual, inteligência artificial e outras ferramentas digitais, Xia Yu mantém-se fiel a um método ancestral, lento e laborioso. Uma escolha que pode parecer anacrónica, mas que adquire uma dimensão quase heroica no nosso contexto. Como escrevia Susan Sontag: “O heroísmo, hoje, consistiria em recusar ser um herói, recusar as seduções de uma excecionalidade grandiosa” [5]. Nesse sentido, a arte de Xia Yu é profundamente heroica.
O que mais me agrada no seu trabalho é a forma como consegue criar uma espécie de comunhão silenciosa entre as suas personagens e nós, espectadores. Estas figuras com expressões frequentemente neutras, quase impassíveis, não nos olham diretamente, e no entanto sentimos uma ligação íntima com elas. Talvez porque nelas reconheçamos as nossas próprias lutas diárias, as nossas pequenas derrotas e as nossas modestas vitórias. Talvez também porque Xia Yu lhes confere uma dignidade que a vida moderna tende a negar-lhes.
Penso especificamente neste quadro impressionante, “Sober” (2021), onde um jovem está representado encostado numa mesa, visivelmente exausto ou bêbado. Uma cena que poderia suscitar zombaria ou julgamento, mas que Xia Yu trata com uma ternura desarmante. A luz suave que banha a personagem, as cores subtis e harmoniosas, tudo contribui para criar uma imagem de grande humanidade. Estamos longe do cinismo fácil que caracteriza tantas obras contemporâneas.
A arte de Xia Yu lembra-nos que a beleza pode surgir das circunstâncias mais comuns, e que a atenção dedicada ao quotidiano pode ser uma forma de resistência num mundo que valoriza a excepcionalidade e o espetacular. Como escreveu o poeta inglês William Blake: “Ver o mundo num grão de areia, E o paraíso numa flor selvagem, Segurar o infinito na palma da mão, E a eternidade numa hora” [6]. Essa capacidade de perceber o extraordinário no ordinário está no cerne do trabalho de Xia Yu.
O que faz a força deste artista é que ele transcende as dicotomias fáceis: tradição e modernidade, Este e Oeste, pessoal e político. A sua obra existe neste espaço intermediário fértil onde as contradições não se resolvem mas coexistem numa tensão criativa. E é precisamente essa ambiguidade que torna o seu trabalho tão pertinente na nossa época de certezas instáveis e identidades fluidas.
Então, ouçam-me bem, bando de snobs, esqueçam por um momento os vossos preconceitos sobre a arte contemporânea chinesa e abram-se à subtilidade e profundidade de Xia Yu. Num mundo artístico saturado de obras ruidosas e superficiais, o seu trabalho oferece um espaço de reflexão e contemplação de que precisamos desesperadamente. E se isso vos parecer demasiado sensato ou demasiado discreto para os vossos gostos habituados aos excessos, lembrem-se de que, às vezes, é no murmúrio que residem as verdades mais essenciais.
- Georges Perec, “O Infra-ordinário”, Éditions du Seuil, 1989.
- Italo Calvino, “Lições Americanas: Memória para o próximo milénio”, Gallimard, 1989.
- David Foster Wallace, “O Rei Pálido”, Little, Brown and Company, 2011.
- Donald Richie, “Ozu: Sua Vida e Filmes”, University of California Press, 1974.
- Susan Sontag, “Sobre a Dor dos Outros”, Farrar, Straus and Giroux, 2003.
- William Blake, “Presságios de Inocência”, 1803.
















