Ouçam-me bem, bando de snobs: na paisagem artística chinesa contemporânea, onde tantos pintores se esgotam a correr atrás de modas ocidentais ou se complacem num tradicionalismo de fachada, Xu Lele destaca-se como uma deliciosa anomalia. Esta mulher nascida em Nanjing em 1955 pratica uma arte que reconcilia o antigo e o moderno com uma inteligência maliciosa que faria inveja aos mais habilidosos contorcionistas da história da arte.
Licenciada em 1976 pelo departamento de belas-artes da Academia de Arte de Nanjing, Xu Lele iniciou uma trajetória pouco convencional: após os seus estudos, escolheu partir para o campo para “fazer a experiência da vida de escritora”, antes de ingressar em 1978 na Academia Provincial de Pintura de Jiangsu, onde se especializou na pintura de personagens e estudou a obra de Chen Laolian, mestre da dinastia Ming. Esta formação clássica, longe de a prender na imitação, forneceu-lhe as ferramentas técnicas que mais tarde lhe permitiriam subverter os códigos com uma mestria consumada.
Porque Xu Lele pertence àquela geração de artistas chineses que soube navegar entre os escolhos do pastiche tradicional e da modernidade importada. Representante da escola da “nova pintura de erudito”, desenvolve um estilo que se inspira na estética clássica chinesa, infundindo-lhe um humor irresistível e uma modernidade assumida. As suas personagens de narizes grandes, olhos pequenos e rostos redondos como luas cheias evoluem em composições de uma sofisticação técnica notável, onde cada linha parece traçada para seduzir o admirador, em vez de impressionar o crítico.
A arte do distanciamento: Xu Lele e a herança de Bertolt Brecht
Existe na obra de Xu Lele uma dimensão teatral que não escapou aos observadores mais perspicazes. As suas personagens, com expressões ligeiramente desalinhadas e proporções deliberadamente deformadas, evocam irresistivelmente as personagens da dramaturgia brechtiana. Tal como o dramaturgo alemão, Xu Lele recusa a identificação emocional direta e privilegia uma forma de distanciamento que permite ao espectador manter o seu espírito crítico. As belezas da dinastia Tang que pinta não são ideais para contemplar de forma passiva, mas construções culturais a questionar com benevolência.
Esta abordagem atinge o seu auge em obras como “As Doze Belezas de Jinling” ou “Mostrar uma Pintura”, onde a artista encena o próprio processo da contemplação artística. As suas personagens parecem conscientes de estar a ser observadas, e essa consciência gera uma ironia subtil que lembra as técnicas de distanciamento queridas por Brecht [1]. Quando Xu Lele pinta uma senhora a olhar para uma pintura, ela cria um jogo de espelhos que interroga a nossa relação com a arte clássica e a sua receção contemporânea.
A influência de Brecht na conceção artística de Xu Lele vai além do mero paralelo estético. Tal como o dramaturgo que queria que o seu público saísse do teatro a refletir em vez de chorar, Xu Lele concebe as suas obras como espaços de reflexão lúdica sobre o legado cultural chinês. Os seus “antepassados” não são figuras veneráveis imobilizadas na sua solenidade, mas contemporâneos disfarçados que nos devolvem, com um sorriso matreiro, a imagem das nossas próprias ilusões sobre o passado. Esta dimensão crítica, sempre temperada com humor, faz dos seus quadros verdadeiros laboratórios de experimentação sobre os códigos de representação. A artista desenvolve assim uma estética da cumplicidade com o espetador, criando um espaço de liberdade crítica no seio da própria tradição pictórica chinesa.
A geometria dos sonhos: Arquitetura e construção do imaginário
A arquitetura desempenha um papel fundamental no universo pictórico de Xu Lele, não como simples cenário, mas como estrutura organizadora do imaginário. Formada na tradição da pintura chinesa onde o espaço não obedece às leis da perspetiva ocidental, ela desenvolve uma conceção arquitetónica da composição que evoca os jardins clássicos chineses com os seus jogos ligados de revelação e ocultação. Os seus pavilhões, as suas cortinas de bambu e os seus toldos de barcos não delimitam simplesmente o espaço pictórico: criam câmaras de ressonância para a emoção e a contemplação.
Esta abordagem arquitetónica da pintura encontra as suas raízes na filosofia chinesa do habitat, onde o espaço doméstico nunca é neutro mas sempre portador de significado simbólico. Em Xu Lele, as arquiteturas pintadas funcionam como metáforas da alma humana, com os seus recantos secretos e as suas perspetivas inesperadas. As suas personagens evoluem em ambientes construídos que refletem os seus estados interiores: os estudiosos melancólicos encontram-se em pavilhões abertos para o infinito, enquanto as belezas vaidosas se abrigam atrás de biombos delicadamente trabalhados.
A originalidade de Xu Lele reside na sua capacidade de transformar esses códigos arquitetónicos tradicionais em linguagem plástica contemporânea. Ela empresta da arquitetura dos jardins chineses o princípio do passeio visual, onde cada ângulo de vista revela uma nova perspetiva sobre o conjunto. As suas composições funcionam como percursos iniciáticos onde o olhar do espetador é guiado de detalhe em detalhe, de surpresa em surpresa. Esta mestria do espaço arquitetónico permite-lhe criar obras de uma complexidade narrativa notável, onde várias histórias podem desenrolar-se simultaneamente em espaços distintos mas ligados por uma lógica composicional rigorosa. A arquitetura torna-se assim para ela uma ferramenta de construção do relato pictórico, permitindo desdobrar no espaço bidimensional da tela a riqueza temporal do conto ou da lenda.
A ironia do tempo: Entre nostalgia e lucidez
O que impressiona de imediato em Xu Lele é a sua notável capacidade para manter um equilíbrio delicado entre afeto e distância crítica em relação à tradição chinesa. Os seus predecessores não são santos a venerar nem figuras ultrapassadas para desdenhar, mas companheiros de percurso com quem ela mantém uma relação de amizade cúmplice. Esta atitude, rara na arte contemporânea chinesa frequentemente dividida entre reverência absoluta e rejeição radical do passado, permite-lhe desenvolver uma linguagem plástica de originalidade impressionante.
O humor de Xu Lele nunca é destrutivo mas sempre benevolente. Quando pinta um erudito com proporções impossíveis a contemplar a lua, não zomba do ideal tradicional do sábio retirado do mundo, mas revela a parte de artifício e construção cultural. As suas deformações, longe de serem caricaturas, funcionam como lupas que revelam os mecanismos ocultos da idealização estética. Esta lucidez sem amargura faz das suas obras verdadeiros antídotos à melancolia nostálgica que frequentemente afeta os artistas confrontados com o peso da herança cultural.
A modernidade de Xu Lele manifesta-se também na sua forma de tratar o tempo pictórico. As suas composições escapam à cronologia linear para criar espaços-tempos híbridos onde passado e presente coexistem naturalmente. Esta temporalidade fluida, característica da estética chinesa tradicional, ganha sob o seu pincel uma nova dimensão que ressoa com as preocupações contemporâneas sobre a memória e a identidade cultural. As suas personagens parecem habitar um presente eterno que não exclui nem a lembrança nem a antecipação, criando uma poesia do instante que transcende as categorias temporais ocidentais. Esta mestria do tempo pictórico faz das suas obras refúgios contemplativos num mundo em que a aceleração generalizada ameaça a própria possibilidade de reflexão.
Longe dos debates teóricos sobre pós-modernidade ou globalização cultural, Xu Lele inventa um caminho singular que reconcilia tradição e inovação sem sacrifícios nem compromissos. A sua arte testemunha uma maturidade cultural que lhe permite assumir plenamente a herança do passado enquanto inventa as formas da sua transmissão futura. Esta sabedoria, que se encontra nas suas declarações onde afirma preferir ser “uma pequena pintora interessante em vez de uma grande pintora aborrecida”, revela uma compreensão profunda do que pode ser a arte na época contemporânea: não mais um veículo de verdades absolutas, mas um espaço de jogo e reflexão partilhada.
A revolução do detalhe: Técnica e obsessão
A técnica de Xu Lele é particularmente interessante porque revela uma conceção da pintura que vai contra as tendências dominantes da arte contemporânea. Numa época em que a velocidade de execução e o impacto imediato parecem prevalecer, ela cultiva deliberadamente a lentidão e a precisão, levando o refinamento do detalhe a limites que beiram a obsessão. Esta abordagem, que reivindica abertamente ao afirmar que “a busca pela minúcia é a minha perseguição dos últimos anos”, não é um mero exercício virtuoso, mas uma filosofia da arte que privilegia a intensidade sobre a extensão.
Esta paixão pelo detalhe tem as suas raízes na sua formação como ilustradora de livros infantis, uma atividade que praticou intensamente antes de se dedicar inteiramente à pintura de caligrafia. Esta experiência ensinou-lhe a importância da narrativa visual e a necessidade de cativar a atenção pela riqueza dos elementos secundários. Nas suas obras atuais, esta lição traduz-se numa proliferação de motivos decorativos de uma complexidade impressionante: bordados, ornamentos arquitetónicos, motivos têxteis que transformam cada centímetro quadrado da tela num território de exploração visual.
A obsessão pelo detalhe em Xu Lele não se trata de mera proeza técnica, mas de uma ética da criação que coloca o prazer de pintar no centro do processo artístico. Como ela própria explica: “É muito prazeroso pintar as meias, a renda!” [2]. Este prazer da criação, raro no discurso artístico contemporâneo frequentemente dominado por preocupações conceptuais, revela uma artista que conseguiu preservar a inocência do ato criador. Esta autenticidade do compromisso pictórico transparece nas suas obras e explica em grande parte o seu poder de sedução. O espetador sente imediatamente que está perante uma artista que manifesta um prazer evidente em exercer a sua arte, e esta evidência comunicativa cria uma cumplicidade imediata que ultrapassa barreiras culturais e temporais. Talvez este seja o segredo da universalidade da sua arte: num mundo saturado de mensagens e intenções, Xu Lele oferece a rara experiência de uma arte que existe primeiramente pelo prazer que proporciona à sua criadora.
A escola do olhar: Pedagogia da visão
Para além da sua produção artística, Xu Lele desenvolve uma verdadeira pedagogia do olhar que transparece na sua prática obsessiva de recorte e organização de imagens. Esta atividade, que ela descreve com entusiasmo nas suas entrevistas, revela uma artista que não se limita a criar mas que organiza metodicamente a sua relação com o património visual universal. Os seus mais de 130 álbuns de recorte testemunham uma abordagem quase enciclopédica que visa cartografar o conjunto das possibilidades estéticas da arte chinesa.
Esta prática do recorte, aparentemente anedótica, esclarece na realidade o método criador de Xu Lele. Ao constituir estes arquivos visuais pessoais, dá-se os meios para dominar a história da arte chinesa não como um corpus teórico, mas como um repertório de soluções plásticas imediatamente disponíveis. Esta abordagem pragmática da tradição permite-lhe evitar as armadilhas da erudição estéril para desenvolver uma relação viva e criativa com o legado do passado.
A generosidade com que Xu Lele partilha as suas descobertas e métodos revela uma conceção da arte como bem comum e não como território privado. Esta abertura, que transparece nas suas numerosas colaborações e na sua disponibilidade para com jovens artistas, faz dela uma figura tutelar da cena artística chinesa contemporânea. A sua influência ultrapassa largamente o círculo dos seus admiradores diretos para irrigar todo o movimento de renovação da pintura tradicional chinesa. Esta dimensão pedagógica da sua obra, frequentemente negligenciada pela crítica, constitui todavia uma das suas contribuições mais duradouras para a arte do seu tempo.
A arte da reconciliação
No panorama frequentemente conflituoso da arte contemporânea chinesa, Xu Lele ocupa uma posição única que lhe permite reconciliar tendências aparentemente contraditórias. A sua arte demonstra que é possível estar profundamente enraizada numa tradição sem renunciar à inovação, ser crítica sem ser destrutiva, ser popular sem ser vulgar. Esta síntese notável faz das suas obras modelos do que poderia ser uma arte verdadeiramente contemporânea: nem na fuga para a frente nem na nostalgia paralisante, mas na invenção de um presente que assume plenamente a sua herança.
O exemplo de Xu Lele mostra que a questão da modernidade artística chinesa talvez não se coloque nos habituais termos de oposição entre tradição e inovação. O seu percurso sugere antes a possibilidade de um caminho intermédio que permita à arte chinesa participar do diálogo internacional sem perder a sua alma. Esta lição, que vai muito para além do âmbito chinês, ressoa com as preocupações de todos os artistas confrontados com o desafio da globalização cultural.
Xu Lele oferece-nos talvez o mais precioso dos presentes: a prova de que ainda é possível, na nossa época de padronização generalizada, desenvolver uma linguagem artística autenticamente pessoal. A sua arte, que não imita nem rejeita mas transforma e enriquece, abre novas perspetivas sobre o que pode ser a criação na era da reprodutibilidade técnica generalizada. Esta originalidade verdadeira, que não se decreta mas se conquista com trabalho e reflexão, faz de Xu Lele uma das vozes mais preciosas da arte contemporânea.
- Bertolt Brecht, Escritos sobre o Teatro, Paris, L’Arche, 1972.
- Entrevista com Qian Xiaozhi, “Diálogo Xu Lele: Mesmo que não se possa ser um grande pintor”, 2010.
















