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Yoshitomo Nara: Os anjos da ira

Publicado em: 19 Novembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 7 minutos

Yoshitomo Nara transforma a solidão da sua infância numa linguagem visual universal. As suas crianças com cabeças sobredimensionadas não são simples caricaturas fofas, são os avatares de uma condição humana complexa, os arautos de uma resistência silenciosa contra a absurdidade do mundo adulto.

Ouçam-me bem, bando de snobs, é hora de falar de Yoshitomo Nara (nascido em 1959). Vocês sabem, esse artista japonês que está abalando o mercado de arte com suas menininhas de olhos enormes e seus cães pensativos. Mas atenção, não se enganem, ele não é apenas mais um artista surfando na onda kawaii, nem um simples seguidor do movimento Superflat de Takashi MURAKAMI. Não, Nara é muito mais que isso, ele é a própria encarnação dessa resistência silenciosa que caracteriza a nossa época.

Crescendo no isolamento de Hirosaki, a 300 quilômetros ao norte de Tóquio, o jovem Nara passava seus dias sozinho, seus pais trabalhando longas horas durante o milagre econômico japonês. Sua única companhia? As ondas da rádio Far East Network, transmitindo música rock americana desde a base militar vizinha. Essa solidão forçada forjou uma sensibilidade única, onde a rebeldia adolescente se mistura a uma profunda melancolia existencial. Foi nesse isolamento que ele desenvolveu esse olhar penetrante que viria a ser sua assinatura artística.

Nara transmuta essa experiência pessoal em uma linguagem visual universal. Suas crianças com cabeças superdimensionadas não são simples caricaturas fofas, elas são os avatares de uma condição humana complexa, os arautos de uma resistência silenciosa contra o absurdo do mundo adulto. Como teria dito Theodor Adorno, essas figuras encarnam a “negação determinada” da nossa sociedade normativa. Cada pincelada é um ato de desafio contra a padronização da experiência humana.

Se vocês pensam que suas obras são simplistas, enganam-se. Tomem sua série emblemática das crianças armadas. Essas meninas pequenas brandindo facas ou serras não são símbolos de violência gratuita, mas sim manifestações do que Herbert Marcuse chamava de “Grande Oposição”, uma revolta contra a repressão social. Quando Nara afirma que essas armas são “como brinquedos”, ele destaca a impotência fundamental de seus personagens diante dos “grandes vilões” ao redor deles. É um comentário mordaz sobre nosso mundo, onde a inocência está constantemente ameaçada pelas forças da autoridade e do conformismo. Essas pequenas rebeldes com olhares acusadores são nossas próprias frustrações encarnadas.

Mas o que torna essas figuras realmente fascinantes é sua ambiguidade fundamental. Elas oscilam constantemente entre vulnerabilidade e desafio, entre inocência e conhecimento. Como em “Dead Flower Remastered” (2020), onde uma menina com sorriso inquietante segura uma serra, sangue escorrendo de sua boca. A imagem é ao mesmo tempo cômica e perturbadora, lembrando o que Georges Bataille chamava de “informe”, essa zona difusa onde as categorias estabelecidas se dissolvem.

A segunda temática que atravessa a obra de Nara é a do isolamento existencial. Suas figuras solitárias, flutuando em espaços monocromáticos, evocam o que Jean-Paul Sartre descrevia como a “contingência” da existência. Essas crianças com olhares acusadores ou melancólicos são as testemunhas mudas da nossa própria alienação. Como em “In the Deepest Puddle II” (1995), onde uma menina com o rosto enfaixado nos encara das profundezas de uma poça, metáfora pungente da alma ferida buscando emergir de sua solidão.

O que é notável é a maneira como Nara consegue criar uma tensão constante entre o pessoal e o universal. Suas figuras, embora inspiradas por seu próprio sentimento de isolamento, transcendem sua origem autobiográfica para se tornarem arquétipos da condição contemporânea. Como teria dito Carl Jung, elas tocam o inconsciente coletivo da nossa época, incorporando nossos medos e desejos mais profundos.

O evento que marcou profundamente uma viragem na sua obra foi o desastre de Fukushima em 2011. As suas figuras tornaram-se mais introspectivas, mais espirituais. Os olhares acusatórios deram lugar a uma meditação silenciosa sobre a fragilidade da nossa existência. Em “Miss Forest” (2010), esta cabeça monumental de olhos fechados evoca as divindades xintoístas, criando uma ponte entre o cosmos e a humanidade. É como se Nara tivesse descoberto o que Martin Heidegger chamava de “serenidade” (Gelassenheit), uma forma de resistência contemplativa perante a tecnocracia moderna.

Esta evolução espiritual não significa, porém, um abandono da sua dimensão crítica. Pelo contrário, as suas obras recentes, como “No War” (2019) e “Stop the Bombs” (2019), mostram um compromisso político mais direto, mantendo essa qualidade meditativa que caracteriza o seu período pós-Fukushima. É o que Jacques Rancière chamaria uma “política da estética”, uma forma de reconfigurar o sensível para abrir novos espaços de resistência.

Ao nível técnico, a sua utilização do acrílico, com contornos nítidos e silhuetas simplificadas, não é uma escolha arbitrária. Participa no que Roland Barthes chamava o “grau zero da escrita”, uma tentativa de encontrar uma linguagem visual que escape às convenções, mantendo-se ao mesmo tempo legível. As suas pinceladas, aparentemente simples, escondem horas de trabalho meticuloso.

Nara transcende as fronteiras culturais mantendo-se profundamente ancorado na sua experiência pessoal. Ao contrário de alguns artistas que se limitam a reciclar clichés pop, Nara aprofunda-se nas profundezas da psique humana. As suas obras são como espelhos que nos devolvem a nossa própria vulnerabilidade, a nossa resistência perante um mundo cada vez mais desumanizado.

O uso que Nara faz dos materiais “pobres”, cartão, madeira recuperada, envelopes usados, não é uma simples escolha estética. É uma declaração política, um rejeito ao fetichismo da mercadoria que domina o mundo da arte contemporânea. Como Walter Benjamin teria dito, esses materiais trazem as marcas da sua “vida anterior”, criando uma autenticidade que desafia a reprodução mecânica. Em “My Drawing Room” (2008), esta abordagem atinge o seu auge, transformando materiais recuperados num espaço sagrado de criação.

A música punk, que tanto influenciou Nara, não é apenas uma referência cultural na sua obra. Incorpora o que Friedrich Nietzsche chamava o espírito dionisíaco, uma força criadora que desafia as convenções apolíneas da ordem social. As suas figuras rebeldes são herdeiras diretas dessa energia subversiva, brandindo a sua solidão como uma arma contra a normalização. Cada obra é como um grito silencioso, uma canção punk traduzida em imagem.

A evolução recente do seu trabalho para obras mais contemplativas não representa um amolecimento da sua crítica social. Pelo contrário, como em “Midnight Tears” (2023), estes rostos monumentais com lágrimas silenciosas são ainda mais acusatórios na sua calma aparente. Recordam-nos o que Emmanuel Levinas chamava a “responsabilidade para com o outro”, uma exigência ética que precede toda teorização. A dor que exprimem é tanto mais pungente quanto contida.

Nas suas instalações recentes, Nara aprofunda esta reflexão sobre o espaço e a intimidade. “Fountain of Life” (2001/2014/2022), com as suas cabeças de crianças empilhadas formando uma fonte celestial, cria o que Gaston Bachelard chamaria uma “poética do espaço”, um lugar onde a interioridade psíquica se materializa no espaço físico. As lágrimas que silenciosamente caem dos olhos das crianças tornam-se uma metáfora da transmissão intergeracional do sofrimento.

O que realmente distingue Nara dos seus contemporâneos é a sua capacidade de manter uma autenticidade visceral apesar do seu sucesso comercial. Ao contrário de outros que se deixaram seduzir pelas sirenes do mercado, Nara continua a criar a partir desse espaço de solidão que o formou. As suas obras permanecem atos de resistência, manifestações do que Jacques Rancière chama “a partilha do sensível”, uma redistribuição dos modos de perceção que desafia as hierarquias estabelecidas.

A arte de Nara não está aqui para nos confortar com imagens fofas. Ela existe para nos confrontar com a nossa própria alienação, com a nossa própria necessidade de rebelião. As suas crianças de olhares penetrantes são os guardiões de uma verdade desconfortável: somos todos esses pequenos seres vulneráveis e revoltados, procurando o nosso lugar num mundo que por vezes parece hostil à nossa humanidade fundamental.

Num panorama artístico muitas vezes dominado pelo cinismo pós-moderno e a superficialidade comercial, Nara permanece um radical autêntico. As suas obras são atos de resistência poética, manifestos silenciosos por uma humanidade mais profunda. Como diria Gilles Deleuze, elas criam “linhas de fuga” que nos permitem escapar aos territórios demarcados da cultura dominante.

Veja-se “Little Thinker” (2021), este pequeno desenho de uma cabeça sem corpo sobre um fundo amarelo. Na sua economia extrema de meios, captura tudo o que faz a grandeza de Nara: a precisão do traço, a profundidade psicológica, a tensão entre a simplicidade aparente e a complexidade emocional. É uma proeza que nos recorda que a arte mais poderosa não é necessariamente a mais espectacular.

E é talvez aqui que reside o verdadeiro génio de Nara: ele transforma a solidão em ligação, a vulnerabilidade em força, o pessoal em universal. Nara lembra-nos que a verdadeira radicalidade reside na autenticidade emocional e no compromisso existencial.

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Referência(s)

Yoshitomo NARA (1959)
Nome próprio: Yoshitomo
Apelido: NARA
Outro(s) nome(s):

  • 奈良美智 (Japonês)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Japão

Idade: 66 anos (2025)

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