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Zhang Enli: O poeta do quotidiano transfigurado

Publicado em: 11 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Zhang Enli é daqueles artistas que compreendeu que a grandeza não reside necessariamente nos temas grandiosos, mas na capacidade de sublimar o ordinário. Zhang Enli percebe a beleza transcendental nos objetos mais modestos do nosso quotidiano.

Ouçam-me bem, bando de snobs, já vai sendo hora de falar de Zhang Enli, nascido em 1965 na província de Jilin. Eis um artista que tem a honra de transformar a banalidade em poesia visual, ao mesmo tempo que nos dá uma lição magistral sobre a arte de ver para além das aparências.

Enquanto alguns se empenham em produzir obras tão vazias quanto os seus discursos, Zhang Enli emerge como um verdadeiro fenómeno. Ele é daqueles artistas que compreenderam que a grandeza não reside necessariamente em temas grandiosos, mas na capacidade de sublimar o ordinário. Imagine-se por um momento Spinoza a pintar, sim, eu sei, é um exercício mental peculiar, mas sigam-me nesta analogia. Tal como o filósofo via a essência divina em cada manifestação da natureza, Zhang Enli percebe a beleza transcendente nos objetos mais modestos do nosso quotidiano.

Tomemos a sua série dos “contentores”, essas caixas de cartão, esses recipientes usados, esses tubos que serpenteiam pelo espaço. Poder-se-ia pensar que se trata de uma versão shanghainesa de Giorgio Morandi, mas é bem mais subtil. Zhang não pinta simplesmente objetos, capta a sua alma, a sua essência, numa abordagem que lembra estranhamente a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Este último falava da “carne do mundo”, essa interface entre o visível e o invisível, e é exatamente isso que Zhang explora nas suas telas. Os seus objetos não são meras representações, tornam-se manifestações tangíveis da nossa relação com o mundo, testemunhas silenciosas da nossa existência.

Mas onde Zhang Enli se torna verdadeiramente fascinante é ao transcender a simples representação para alcançar uma forma de meditação visual. As suas “Space Paintings”, essas instalações imersivas onde pinta diretamente nas paredes, no chão e no teto, são nada menos do que uma reinvenção radical da nossa relação com o espaço. É como se Marcel Proust tivesse decidido pintar os seus “momentos privilegiados” em vez de os escrever. Estas obras mergulham-nos num banho de consciência pura, onde os limites entre o observador e o observado se dissolvem. Esta apresentação imersiva não deixa de lembrar as experiências de James Turrell sobre perceção e luz, mas Zhang adiciona-lhes uma dimensão narrativa subtil que as ancore numa experiência mais quotidiana. Estes espaços tornam-se uma espécie de câmaras de ressonância onde as nossas próprias memórias e experiências podem desdobrar-se.

Nas suas últimas obras abstratas, Zhang leva esta exploração ainda mais longe. As linhas fluidas, as cores diluídas, as formas que parecem flutuar num espaço indefinido recordam-nos que toda perceção é fundamentalmente uma construção mental. É aqui que o pensamento de William James sobre o “fluxo de consciência” encontra um eco visual impressionante. As telas de Zhang já não representam objetos ou espaços, tornam-se mapas da própria consciência.

O que é particularmente saboroso na sua abordagem é a forma como ele brinca com as convenções da pintura chinesa tradicional, subvertendo-as alegremente. As grelhas que traça a lápis antes de pintar não deixam de lembrar a técnica ocidental do “squaring up”, mas servem aqui para criar uma tensão deliciosa entre estrutura e fluidez. É como se Piet Mondrian tivesse decidido dar um passeio num jardim zen depois de beber demasiado saquê.

As suas últimas obras, exibidas no Long Museum de Xangai em 2023, mostram uma evolução fascinante para uma forma de abstração que não é propriamente isso. As marcas, vestígios, escorridos que compõem as suas telas são sinais de uma presença humana, de uma experiência vivida. Lembra-nos Cy Twombly, mas de forma mais subtil, mais meditativa. Zhang não procura impressionar, procura revelar.

A ironia suprema em tudo isto é que Zhang Enli consegue ser profundamente contemporâneo precisamente porque recusa as poses e as posturas da arte contemporânea. Numa mundo saturado de imagens gritantes e conceitos grandiloquentes, propõe-nos uma forma de silêncio visual, um espaço de contemplação onde o olhar pode finalmente descansar, respirar, meditar.

Este artista compreendeu algo essencial: a verdadeira inovação na arte não consiste em fazer novo por fazer novo, mas em encontrar novas formas de ver o antigo. As suas pinturas são como koans zen: quanto mais as olhamos, mais elas nos olham. Lembram-nos que a verdadeira revolução não está no espetacular, mas na atenção dada aos detalhes mais ínfimos da nossa existência.

Se pensam que eu estou a exagerar, dêem uma volta pelo Centre Pompidou ou pela Tate Modern, onde as suas obras convivem com as dos “grandes nomes” da arte contemporânea. Verão que neste concerto de gesticulações artísticas, as telas de Zhang ressoam com uma clareza particular, uma presença que não tem nada a provar porque simplesmente está lá, autêntica e poderosa na sua própria modéstia.

Zhang Enli oferece-nos uma lição preciosa: a arte mais profunda não é aquela que grita mais alto, mas a que nos permite ver o mundo com olhos novos. Numa época obcecada pelo espetacular e pelo instantâneo, a sua obra é um convite à lentidão, à observação paciente, à contemplação ativa. É uma arte que não se consome, mas se vive, que não se explica, mas se experimenta.

Por isso, da próxima vez que encontrarem uma caixa de cartão abandonada ou uma mangueira enrolada numa esquina, pensem em Zhang Enli. E talvez, só talvez, vejam nesses objetos ordinários a poesia escondida que só ele sabe revelar tão bem. Porque é mesmo esse o génio deste artista: fazer-nos ver a beleza onde tínhamos deixado de olhar.

Olhemos mais de perto a sua técnica pictórica, que merece atenção. Zhang Enli desenvolveu uma abordagem única à pintura que desafia as convenções enquanto as respeita subtilmente. Usa uma paleta de cores deliberadamente restrita, criando harmonias subtis que recordam as nuances de cinzento na pintura a tinta tradicional chinesa. Mas o que é verdadeiramente notável é a forma como trabalha a matéria pictórica. Diluindo a sua tinta até quase à transparência, cria camadas sucessivas que conferem às suas obras uma profundidade atmosférica única.

Esta técnica remete para as pesquisas de Pierre Bonnard sobre a luz e a cor, mas Zhang acrescenta-lhe uma dimensão metafísica própria. Os seus quadros não são tanto representações como manifestações, aparições que emergem lentamente da superfície da tela. É como se cada quadro fosse o resultado de um longo processo de meditação, onde o artista teria gradualmente destilado a essência do seu tema.

Tomemos por exemplo a sua série sobre árvores. Estas pinturas não são simples representações botânicas, mas profundas explorações da relação entre o orgânico e o inorgânico, entre a natureza e a cidade. Zhang pinta estas árvores como se fossem presenças fantasmáticas, sobreviventes estoicos na paisagem urbana de Xangai. A forma como captura a luz filtrando-se entre os ramos recorda as experimentações de Claude Monet em Giverny, mas com uma sensibilidade contemporânea que fala da nossa relação complexa com a natureza nas megacidades modernas.

Nas suas últimas obras, nomeadamente as expostas no He Art Museum em 2023, Zhang mostra uma evolução fascinante para uma forma de expressão mais livre, mais fluida. Os objetos e os espaços que pinta parecem dissolver-se numa espécie de nevoeiro colorido, criando composições que oscilam entre o tangível e o intangível. Esta abordagem lembra as pesquisas de Mark Rothko sobre a transcendência através da cor, mas Zhang aporta uma sensibilidade muito diferente. Onde Rothko procurava criar experiências espirituais quase místicas, Zhang mantém-se firmemente ancorado no mundo material, mesmo quando explora os seus aspetos mais etéreos. As suas abstrações estão sempre ancoradas numa experiência concreta do mundo, numa observação minuciosa da realidade quotidiana.

Há algo profundamente radical nesta abordagem. Zhang propõe-nos uma forma de resistência tranquila, uma celebração da lentidão e da atenção. As suas obras convidam-nos a abrandar, a observar, a meditar sobre esses aspetos do nosso ambiente que por vezes tomamos como garantidos. A influência da filosofia budista é palpável no seu trabalho, não de forma explícita ou dogmática, mas na sua maneira de apreender a realidade. Essa ideia de que todos os fenómenos estão interligados, que a forma é vazio e que o vazio é forma, encontra um eco poderoso nas suas composições onde os objetos parecem simultaneamente materializar-se e dissolver-se.

Zhang Enli conseguiu transformar a nossa visão, fazer-nos ver o mundo de forma diferente. Numa época marcada pela sobrecarga visual e a corrida à novidade, a sua obra oferece-nos um espaço de contemplação, um convite a redescobrir a poesia do quotidiano. Zhang Enli mostra-nos que ainda é possível criar uma arte que seja ao mesmo tempo profundamente contemporânea e profundamente humana, uma arte que fala à nossa experiência comum ao mesmo tempo que transcende os limites da nossa perceção ordinária.

É tempo de reconhecer em Zhang Enli um dos artistas mais importantes do nosso tempo, não porque procure revolucionar a arte contemporânea, mas precisamente porque nos lembra o que a arte pode ser no seu melhor: um meio de transformar a nossa perceção do mundo, de revelar a beleza oculta no quotidiano, de nos conectar a uma dimensão mais profunda da existência.

Ao contrário de muitos artistas da sua geração que escolheram explorar temas políticos ou sociais de forma explícita, Zhang optou por uma abordagem mais subtil, mais poética. As suas primeiras obras figurativas dos anos 1990, representando cenas da vida quotidiana em Xangai, evidenciavam já uma sensibilidade única, uma atenção particular aos detalhes aparentemente insignificantes da vida urbana.

Mas foi verdadeiramente na sua transição para a pintura de objetos no início dos anos 2000 que Zhang começou a desenvolver a sua linguagem artística mais pessoal. As suas séries de “contenedores”, caixas de cartão, baldes, tubos, podem ser vistas como uma meditação profunda sobre a natureza da existência. Neste sentido, ele não é apenas um artista maior do nosso tempo, mas um verdadeiro filósofo do visível, um poeta do ordinário que transforma a nossa visão e enriquece a nossa experiência quotidiana.

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Referência(s)

ZHANG Enli (1965)
Nome próprio: Enli
Apelido: ZHANG
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 60 anos (2025)

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